sábado

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"Relatam os Taoístas que, no grande começo do Não-Começo, o Espírito e a Matéria se encontraram em combate mortal. Por fim, o Imperador Amarelo, o sol do Céu, triunfou sobre Shuhyung,* o demónio da escuridão e da terra. O Titã, na sua agonia de morte, bateu com a cabeça contra a abóbada solar e despedaçou em fragmentos a cúpula azul de jade. As estrelas perderam os seus ninhos, a lua errou sem destino por entre os abismos agrestes da noite. Desesperado, o Imperador Amarelo procurou por onde pôde pelo conservador dos céus. Não teve de procurar em vão. Do mar oriental ergueu-se uma rainha, a divina Niuka,* de cornos coroada e com cauda de dragão, resplandecente na sua armadura de fogo. Foi ela quem soldou o arco-íris de cinco cores no seu caldeirão mágico e reconstruiu o céu chinês. Mas também se conta que Niuka se esqueceu de preencher duas pequenas fendas no firmamento azul. Assim principiou o dualismo do amor - duas almas rolando pelo espaço e nunca em sossego até se unirem para completar o universo. Cada um tem de construir o seu céu de esperança e de paz.
O céu da humanidade moderna está de facto despedaçado na luta ciclópica pela riqueza e pelo poder. O mundo anda às cegas na sombra do egoísmo e da vulgaridade. O conhecimento compra-se com má consciência, a benevolência pratica-se por amor à utilidade. O Oriente e o Ocidente, como dois dragões lançados num mar fermentoso, esforçam-se em vão por voltar a merecer a jóia da vida. Precisamos novamente de uma Niuka que conserte a grandiosa devastação; aguardamos o grande Avatar. Entretanto, tomemos um gole de chá. O ardor da tarde ilumina os bambus, as fontes murmuram com gosto, o sussurro dos pinheiros escuta-se na nossa chaleira. Sonhemos com a evanescência, e demoremo-nos na bela tolice das coisas."

*Shuhyung: Chu Yung
*Niuka: Nu Wa (Nu K´ua Shih).

Kakuzo Okakura, O Livro do Chá, BI.012,2007, pp 18-19

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